Sobre os novos limites para vagas de garagem no entorno do transporte público previstos na minuta de lei da Revisão Intermediária do PDE 2014
Ano de publicação ou divulgação do estudo: 2023
Um grande passo foi dado no sentido de promover uma cidade mais orientada para o transporte público e sustentável quando o PDE, aprovado em 2014, definiu limites máximos de vagas de garagem que seriam incentivadas pela regulação urbana. O PDE anterior, aprovado em 2002, previa o contrário, que toda unidade habitacional deveria ter no mínimo uma vaga de garagem; e para usos não residenciais, no mínimo uma vaga a cada 35m² de área construída computável. Seguindo uma tendência de bom planejamento urbano contemporâneo e rompendo com um paradigma “carrocêntrico”, o PDE 2014 corretamente inverteu essa lógica e limitou a quantidade vagas de estacionamento incentivadas em empreendimentos próximos a estações de metrô e trem e corredores de ônibus.
Atualmente, nos eixos, a área de até uma vaga de garagem por unidade habitacional não é contabilizada como computável para o cálculo da outorga. Nos usos não residenciais, é isenta uma vaga a cada 70m² de área construída computável. O gráfico abaixo mostra que a média de vagas por unidade lançada nos últimos 13 anos na cidade já estava em tendência de queda antes de 2014 e 2016. Contudo, tal queda claramente se intensifica e fica mais consistente a partir de 2017 e 2019. Em 2021, o número de vagas por unidade lançada é um terço do observado em 2009.
As vagas de garagem, seja em área privada ou em ruas públicas, são cada vez mais alvo de regulação e precificação pois constituem-se como um forte incentivo ao uso do carro. É preciso reconhecer que todo tipo de infraestrutura destinada aos automóveis – seja mais espaço para circulação nas ruas ou para guardá-los em garagens – invariavelmente vai estimular seu uso e pesa na escolha do modo de deslocamento. Os eixos, apesar de serem bastante heterogêneos entre si, frequentemente se localizam em regiões de bairros consolidados, centros ou subcentros de empregos e serviços, onde os imóveis são mais caros. Parte desse valor deve-se à proximidade ao transporte público e pela maior presença de urbanidades em geral, o que acaba atraindo um público de alta renda, mas que muitas vezes não utiliza o transporte público como meio de locomoção cotidiano.
Ao regular o número de vagas de garagem que podem ser construídas nos empreendimentos próximos ao transporte público, a prefeitura busca desestimular que tais regiões sejam demandadas por moradores dependentes do carro, que não se dispõem a usar metrô, trem e ônibus no seu dia a dia. Unidades habitacionais com menos vagas de garagem nos eixos serão preferidas por usuários dispostos e utilizar menos o automóvel, o que otimiza o uso do transporte público, com uma série de benefícios relacionados à redução de congestionamentos, emissões, acidentes de trânsito e saúde, entre outros.
Não apenas o estímulo a unidades e empreendimentos habitacionais com menos vagas de garagem foi introduzido no PDE 2014; ele também criou incentivos para promover maior adensamento populacional nos eixos por meio do estímulo a empreendimentos maiores e com mais unidades de menor metragem. Para impulsionar empreendimentos imobiliários maiores, os eixos foram demarcados com Coeficiente de Aproveitamento (“CA” a partir daqui) igual a quatro, o que significa, via de regra, que é possível construir até quatro vezes o tamanho do terreno. O CA igual a quatro, que é o maior valor possível hoje na cidade, foi combinado com o estabelecimento de uma Cota Parte para garantir um número mínimo de unidades habitacionais por metro quadrado de terreno (buscando garantir o aumento na densidade habitacional da região). O valor estabelecido para Cota Parte nos eixos é menor ou igual a 20, o que quer dizer que a quantidade de área de terreno existente para cada unidade construída (a área do terreno dividida pelo número de unidades) deve ser igual ou menor que 20m².
Os parâmetros de CA e Cota Parte nos eixos fazem com que a área média das unidades nessas regiões tenha que ser menor que 80m2. Os gráficos abaixo mostram que de fato houve um crescimento claro no número médio de unidades nos novos empreendimentos habitacionais nos eixos, e essas novas unidades são menores na média.
O mercado imobiliário se adaptou à legislação e aos incentivos criados de diversas maneiras. Conforme mencionado, os eixos são localizados em regiões de bairros mais dinâmicas, onde se concentram mais empregos, comércios, serviços e outras urbanidades. São regiões valorizadas, demandadas por moradores de alta renda, que buscam apartamentos maiores e utilizam menos o transporte público. Incorporadoras, para responder à legislação e atender à demanda de moradores de alta renda por habitações grandes e com vagas de garagem, passaram a criar empreendimentos com apartamentos grandes e muito pequenos no mesmo lançamento3. Houve uma proliferação de studios sem vagas de garagem em empreendimentos com unidades maiores com mais de uma vaga, respeitando a legislação vigente. Os gráficos abaixo mostram o crescimento do número de unidades com menos de 35m2 nos eixos e o forte aumento do desvio-padrão das áreas das unidades em um mesmo empreendimento – isto é, da diferença entre a área média e as áreas mínimas/máximas das unidades.
Assim, houve um estímulo muito grande à construção de studios aparentemente sem a demanda correspondente. Levantamentos já sugeriram que há uma oferta artificial de unidades muito pequenas que não irão encontrar demanda no mercado. Há necessidade de estudos específicos sobre este fenômeno que investiguem suas possíveis consequências: unidades podem ficar vacantes, acirrando o problema de imóveis ociosos na cidade; mas também podem criar condições para apartamentos mais acessíveis a famílias de renda média e baixa bem localizados. A mídia tem publicado relatos de studios sendo desmembrados para se juntar a apartamentos maiores, comprados por investidores ou utilizados para hospedagem de curta duração. Se objetivo é adensar os eixos, studios vagos ou utilizados para condutas de subversão ao regramento atual com certeza devem ser desestimulados e combatidos. No entanto, foge ao escopo desta nota investigar de forma mais aprofundada tal fenômeno.
No dia 20 de março de 2023, a prefeitura enviou o projeto de lei do Executivo para a revisão do Plano Diretor e alterou novamente a regra para vagas de garagem incentivadas nos eixos. A proposta dá dois passos para trás e retrocede em um dos instrumentos fundamentais para promover o objetivo do Plano Diretor de incentivar o uso do transporte público e da mobilidade ativa na capital paulista.
Pela regra atual, nos eixos, a área de até uma vaga de garagem por unidade habitacional não é contabilizada como computável para o cálculo da outorga onerosa do direito de construir. Na minuta de lei apresentada em janeiro deste ano, buscou-se reduzir os incentivos para a construção de apartamentos muito pequenos, chamados comumente de studios, e a nova regra foi proposta com a seguinte redação:
“nos usos R [residencial], observado o mínimo de 35m² (trinta e cinco metros quadrados) de área privativa da respectiva unidade, alternativamente:
1 – 1 (uma) vaga por unidade habitacional;
2 – 1 (uma) vaga a cada 70m² (setenta metros quadrados) de área construída computável, excluídas as áreas computáveis ocupadas por vagas, desprezadas as frações.”
Ou seja, seria possível permanecer no critério de uma vaga por unidade conforme legislação atual, porém considerando apenas unidades com exatos ou mais de 35m² de área útil. A segunda opção de cálculo considerava uma vaga a cada 70m² de área construída computável em unidades com mais de 35m2 de área útil. Na minuta final do executivo municipal, apresentada no dia 20 de março, a regra permaneceu similar à inicialmente proposta, no entanto alteraram-se os parâmetros: o limite inferior de 35m2 de área útil agora é de 30m2 de área construída computável; e na segunda opção, em vez de uma vaga a cada 70m² de área construída computável, passa a ser a cada 60m2, conforme redação abaixo:
“nos usos R [residencial], alternativamente:
1 – 1 (uma) vaga por unidade habitacional maior ou igual a 30m2 (trinta metros quadrados) de área construída computável;
2 – 1 (uma) vaga a cada 60m2 (sessenta metros quadrados) de área construída computável, excluído o somatório das áreas das unidades habitacionais menores ou iguais a 30 m2 (trinta metros quadrados) de área construída computável e as áreas ocupadas por vagas, desprezadas as frações.”
Ainda como alteração em relação à minuta apresentada em janeiro, foi acrescentada a possibilidade de alteração da cota máxima de terreno por unidade habitacional (Cota Parte) de 20 para 30m², mediante pagamento adicional de outorga onerosa, conforme redação do novo artigo 19):
“Nas áreas de influência dos eixos, a cota máxima de terreno por unidade habitacional poderá ser superada, até o limite de 30m² (trinta metros quadrados) de terreno por unidade, mediante aplicação de Fator Social – FS igual a 2 (dois) para uso residencial.”
De início, podemos explorar esquematicamente como as diferentes regras propostas impactam o limite de vagas incentivadas por unidade em empreendimentos residenciais nos eixos. Os gráficos a seguir mostram como o número máximo de vagas por unidade varia de acordo com a área média das unidades em um empreendimento. Na regra atual, o empreendimento pode ter até uma vaga por unidade (vagas por unidade ≤ 1), não importa o tamanho médio das unidades. Entretanto, No novo artigo 19 proposto pela prefeitura, os empreendimentos nos eixos poderão ultrapassar a metragem média limite de 80m2 (cuja cota parte equivale a 20m²), que poderão ter em média 120m² (cota parte de 30m²) mediante pagamento adicional de outorga onerosa.
Nesse caso, considerando a regra proposta no projeto de lei, seria possível aprovar até duas vagas por unidade habitacional. É notável o incremento que o novo regramento trará no número potencial de vagas de garagem por unidade, o que significa que seriam permitidos apartamentos maiores e com mais vagas de garagem próximos ao transporte público, tipologia que se buscou desincentivar nos eixos com o objetivo de promover mais densidade residencial e atração de moradores dispostos a usar o metrô, o ônibus e o trem.
Para simular o incremento em função desse conjunto de alterações, fizemos um exercício de estimar o limite total de vagas de garagem que seriam isentas de outorga nos últimos três anos caso os critérios propostos nas duas minutas estivessem em vigor. Tal exercício considera um ajuste simples de mercado, em que os studios não seriam produzidos e em seu lugar seriam feitos apartamentos exatamente acima dos limites mínimos nas regras propostas (35m2 de área útil na inicial e 30m2 na nova proposta) para permitir que sejam contabilizados para a isenção de vagas de garagem.
O gráfico a seguir mostra o resultado das estimativas. Na situação em que a regra proposta na minuta publicada em janeiro estivesse vigente, há um aumento no número máximo de vagas que poderiam ser produzidas de cerca de 7% no total. Já considerando a nova regra proposta na minuta de lei enviada pelo executivo no dia 20 de março, o aumento seria de 12,2% em relação ao número máximo de vagas que poderiam ter sido feitas nos últimos três anos nos eixos.
O PDE 2014 de São Paulo foi premiado por introduzir instrumentos para induzir seu crescimento de modo mais orientado ao transporte público. Apenas permitir mais adensamento nos eixos não garante que mais pessoas passem a usar o transporte público. Esse foi o erro cometido por Curitiba, onde, apesar do adensamento ao longo dos corredores de BRT (bus rapid transit), o excesso de vagas de estacionamento em prédios próximos contribuiu para a maior propriedade de carros entre os moradores que residem nas imediações das estações de transporte público do que entre os moradores mais distantes (ITDP, 20188). Curitiba é hoje a cidade com o maior índice de motorização do Brasil, com 57 automóveis para cada 100 habitantes9, apesar de ser referência internacional em planejamento urbano e de transporte.
A estimativa do estudo indica que poderá haver um efeito significativo de aumento do tamanho das unidades produzidas e do número de vagas de garagem em novos empreendimentos próximos ao transporte público. Alternativa superior a esta proposta é contagem integral de áreas de vagas de garagem no cálculo da área construída computável, conforme já adotado em Cingapura. Vagas de garagem certamente não produzem externalidade positivas, apenas benefícios privados e deve ser tratada na regulação urbana como mais um cômodo do apartamento. No regramento atual, uma vaga de estacionamento é mais barata do que um quarto a mais em um apartamento. Um cômodo a mais pode promover maior adensamento. Um carro a mais gera apenas mais congestionamento.